O semblante feliz entrega: Carmelito Bifano (à direita) aprecia o jornalismo ‘pés na areia’. Foto: Guilherme Almeida

Um surfista do jornalismo

Com 26 anos de profissão, o editor de Geral do Correio do Povo, Carmelito Bifano, fala sobre suas paixões

Frederico Tarasuk
18 min readNov 24, 2021

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Desde os tempos de boy no jornal Zero Hora, ainda no século passado, Carmelito Bifano, 51 anos, se diz “um apaixonado pela informação”. Natural de Cachoeira do Sul, o surfista nas horas vagas é editor do caderno Geral do Correio do Povo e tem uma extensa folha de serviços prestados ao jornalismo gaúcho. Além dos veículos já citados, trabalhou na rádio Gaúcha, no UOL e também foi pioneiro no jornalismo esportivo online com o site Final Sports. Em entrevista, ele fala sobre ética de trabalho, seu grande amor, o jornalismo esportivo e também conta causos que presenciou. Confira a conversa.

Fredo Tarasuk: Por quais veículos você já passou? Quantos anos você já tem de carreira?

Carmelito Bifano: Eu comecei no jornalismo em 1995, como office-boy interno do jornal Zero Hora (ZH). Se é que dá para considerar isso jornalismo, eu pegava papel e carregava material para os jornalistas.

FT: Mas eu imagino que você já estava em contato com a profissão desde então…

CB: Eu sempre cito isso porque foi um aprendizado gigantesco, uma oportunidade gigante que o ZH me deu. Eu trabalhei durante oito anos no ZH, nunca como jornalista. Mas fiz muitas matérias pro jornal. Na época era proibido fazer [matérias] porque existia a obrigatoriedade do diploma, então a gente fazia e não aparecia nosso nome. Escrevi para todos os cadernos do Zero Hora. Pro esporte, empregos, economia… Eu fiz de tudo.

FT: E naquela época, quem eram os jornalistas da velha guarda que estavam no jornal? Tem algum nome que você queira destacar, que tenha alguma história?

CB: Um dos caras que eu sempre gostei no jornalismo — porque eu sempre fui um aficionado por futebol, então quando eu pensei em fazer jornalismo, foi principalmente por desejo de trabalhar na área — foi o Guerrinha, Adroaldo Guerra Filho. Depois foi ele quem me deu minha primeira oportunidade no Diário Gaúcho, por exemplo. Tem umas histórias legais, por sinal, a primeira entrevista que eu fiz na minha vida — mais ou menos o que tu estás fazendo agora — foi com o Guerrinha. Na época eu tinha 25 anos e era metido a malandro. Chegou uma hora da entrevista que eu tentei descontrair e perguntei: “e aí, Guerrinha, como é que é? Jornalista pega muita mulher?” Rapaz… Esse cara fechou a cara e disse: “o negócio é o seguinte, tu quer ser jornalista, tu tira essas bobagens da tua cabeça, pois tu vais trabalhar feito bicho, todo mundo vai te odiar porque tu vai ser jornalista esportivo. Os do teu time vão te odiar, os do rival também. Então é o seguinte, meu amigo, tu vai ganhar mal e trabalhar muito. Esquece esse negócio de pegar mulher”.

FT: Foi um bom conselho para quem estava em início de carreira?

CB: É, é uma carreira bastante árdua… A minha vida é um pouquinho complicada porque eu fiz muita coisa ao mesmo tempo. Nesses oito anos que eu estive no ZH, era proibido aos funcionários da RBS trabalharem em dois veículos diferentes. Era dedicação exclusiva, mesmo sendo da área administrativa. Como eu gostava muito de esportes, um amigo chegou e me convidou para gente criar um site, isso lá em 2000, 1999 para ser mais preciso. O site era chamado Final Sports. Foi lá que eu aprendi a escrever, com o Cesar Cidade Dias, que hoje é comentarista da Band. Ele resolveu montar o site e me convidou para fazer a parte jornalística do site, mesmo eu tendo pouca experiência, apenas cinco anos de jornalismo. Mas fizemos um belo trabalho e, mesmo assim, o pessoal do ZH deixou, isso é uma curiosidade… Eu conversei com o pessoal, e o pessoal: “não tem problema, o site é pequeno e não vai ser concorrente, então pode fazer”.

FT: E tu, na época ainda trabalhava no administrativo de ZH, ainda era boy?

CB: Na verdade eu vou te contar assim: existem vários caminhos, e existia um caminho na minha época em que tu, primeiro, era auxiliar de redação interno que eles chamavam. Depois tu passavas pelo fotovix [antigo dispositivo que processava os filmes fotográficos], que era o setor em que os jornalistas escolhiam as fotos para as matérias, depois passava pelo arquivo fotográfico e a última possibilidade de um estudante trabalhar no Zero Hora era na Agência RBS. Era onde chegavam as notícias e fotos de agências de fora do Rio Grande do Sul, além de fazer decupagem de programas. Tem uma história curiosa também dessa época de agência. Eu fui quem alertou a redação do Zero Hora do ataque em 11 de setembro às torres gêmeas, eu estava trabalhando, decupando um Bom Dia Brasil…

FT: O que é decupar?

CB: Tu escutas o que está passando no jornal e escreve um resumo pros jornalistas da redação saberem o que está acontecendo. Então eu estava fazendo a decupagem do jornal e quando eu olho para a TV do lado tem uma fumaceira em um edifício. E eu: “opa o que tá acontecendo aqui”? Aumentei o volume e a tv dizia “um avião se chocou com uma torre do World Trade Center em Nova Iorque”. Eu me levantei, bati na porta da sala de reuniões e avisei a Marta Gleich, que era a editora da manhã do Zero Hora: “óh, bateu um avião em um prédio nos Estados Unidos”. Aí ela me olhou assim: “tá, mas era um teco-teco, né”? “Não, não, é um avião de passageiros”, eu falei. Todo mundo levantou e saiu correndo. Quando ela chegou lá para ver, estava o segundo avião batendo na torre. Então só para dar o exemplo de como a gente fazia um trabalho acessório, administrativo, mas a gente também participava de alguma forma do jornalismo. Isso é uma dica que eu queria dar: tu podes ter o jornalista que fica famosão, o William Bonner, pode ter o Guerrinha, o David Coimbra, o Juremir do Correio do Povo, mas o trabalho, no jornalismo, é sempre coletivo. Jamais é individual. As pessoas têm a mania de chamar pra si as coisas porque é do ser humano, mas o jornalismo é feito coletivamente.

FT: E como tu saiu do ZH?

CB: Oito anos de Zero Hora depois, um jornalista chefe chegou para mim e disse: “cara tu tá há muito tempo aqui no Zero Hora e tu não vai ter espaço no esporte porque o editor não quer trabalhar contigo. E eu, se fosse tu, procurava outro rumo” — coisa rara na minha vida, porque as pessoas geralmente gostam de mim e me dão oportunidades.

FT: Mas isso foi uma demissão ou uma dica?

CB: Não, demissão nada, ele mandou eu sair. Nem pagar eles queriam. O que eu fiz? Desci um lance de escadas e fui na [rádio] Gaúcha falar com o Cléber Grabauska, que é um grande amigo meu e um dos meus grandes ídolos no jornalismo: “Cléber, eles tão me mandando ir embora do jornal, tem uma vaga pra mim”? Ele respondeu assim: “segura que eu vou te conseguir uma vaga”. Em uma semana eu estava contratado pela Rádio Gaúcha. Eu fiquei dois anos na Gaúcha com essa minha voz ‘nhé nhé nhé’, que não é muito legal para a rádio. Aí acabei optando sair da Gaúcha após o título mundial do Inter, em 2006, e ficar no Final Sports, o site aquele que havia criado lá em 2000. Ele durou 10 anos, no começo do jornalismo digital. As agências de publicidade não acreditavam no site, não acreditavam que a gente pudesse vender uma marca, apesar de ter um acesso enorme. Chegávamos a bater, por exemplo, os acessos do Banrisul.

FT: Imagino que por ser um veículo novo, com um plano de negócios inovador, as pessoas não entenderam que aquilo poderia ser monetizado?

CB: E tem também uma coisa do gaúcho… Gaúcho gosta de marca, de grife, de aparecer. Nós tínhamos um acesso enorme, mas não se traduzia em publicidade. Nesse meio tempo, a Claro viu nosso trabalho e nos contratou para fazermos aquelas mensagens de SMS, boletins sobre futebol. Foi dali que saiu o dinheiro pra segurar o site por 10 anos. A gente começou a fazer região sul, aí os caras [da claro] gostaram e começamos a fazer além da região sul. Fizemos centro, sudeste e acabamos fazendo todo Brasil. Ganhamos muita grana nessa época.

FT: E depois do Final Sports, o que veio?

CB: Saí do site e fui para o UOL Esportes, de São Paulo. Fiquei como correspondente do UOL, fazendo dupla Gre-Nal aqui em Porto Alegre.

FB: Sempre trabalhando com esportes?

Entrevistando o então técnico do Internacional, Tite. Foto:Arquivo Pessoal

CB: Sempre com esporte, foi a área que eu sempre gostei mais, mas eu sempre fui apaixonado por informação. O meu grande barato é a informação. Sempre tentei ser um cara mais ligado em tudo possível, lia bastante jornal, procurava muitas informações sobre as coisas que eu tinha afinidade. Gosto muito de áreas bem estranhas, como tecnologia espacial. Tu não tem muito onde trabalhar, mas como eu gosto, eu procuro…

FT: Você foi o primeiro jornalista que eu vi cobrindo o surfe, apesar de hoje ser um esporte bem difundido, mas pra mim é um tema mais diferente, ele também se encaixa nessas “áreas estranhas”?

CB: O surfe, como o skate eram esportes mais marginalizados no nosso país, com o preconceito brasileiro, aquele tradicional. Eu me criei surfando, desde os 13 anos, desde 1983 eu surfo, então eu vi toda a caminhada do esporte. Hoje quem faz surfe é desembargador, médico, político.

FT: Hoje é uma coisa muito mais elitizada?

CB: É, e o ápice chegou com as vitórias dos atletas brasileiros, então todo mundo acompanha isso.

FT: E como você saiu do UOL?

CB: Faltando uma semana pra Copa no Brasil, em 2014, recebo uma ligação do UOL e o chefe me diz: “Carmelito, Porto Alegre é o escritório do UOL que a gente menos tem acessos [no site]. Tu foste o último dos 3 jornalistas que temos aqui a entrar”… E ai me disseram isso por telefone, que eu estava fora. Foi a primeira demissão em 30 anos como profissional. Eu fiquei naquela “e agora o que que eu faço?”. Mas como eu sempre fui uma pessoa que prezei pelo respeito as pessoas, pela camaradagem e por ajudar todo mundo, graças a Deus eu não fiquei uma semana desempregado. Consegui com o Márcio Gomes, lá no Correio do Povo (CP), a vaga pra trabalhar como redator no site do CP. E agora faz um mês que eu fui promovido a editor da editoria de Geral do jornal, não do site.

Em 2014, quando entrou para o jornal Correio do Povo. Foto: Acervo pessoal

FT: E como tem sido nesse desafio novo, agora como editor? Você aprende muito? Faz coisas muito diferentes do que as que já fazia?

CB: Como eu estou há muito tempo no jornalismo, há pequenas diferenças. Qual a minha função? Basicamente os repórteres fazem o texto, a pauteira me passa as pautas e eu coloco as pautas no jornal. Então eu edito muito texto, meu trabalho é pegar um textão e deixar pequenininho para o tamanho do jornal. Coloco foto, faço a página junto com o diagramador. Esse é meu trabalho. Então eu já sabia fazer isso. Claro que tem alguma manha aqui, outra ali e tal. Vem sendo um pouco difícil porque é para serem dois editores de Geral. Casualmente eu entrei e uma semana depois o editor, Paulo Mendes, que está há mais de 10 anos lá, entrou de férias — por questões de contrato trabalhista— , então fiquei fazendo o trabalho de duas pessoas, entende? Os pauteiros me ajudaram, mas eles têm as suas funções e tiveram que trabalhar dobrado, mas ajudaram muito. E logo depois a pauteira, Luciamem Winck — que é outra pessoa que eu gosto muito e que me deu muitas oportunidades — entrou de férias. Estou eu e o pauteiro Henrique Massaro na editoria de Geral do Correio do Povo.

FT: Você falou um pouquinho dessa caminhada, de algumas dessas dificuldades e de diversos caminhos que trilhou no jornalismo, como que o jornalista sobrevive — profissionalmente — no mercado?

CB: Uma coisa que é importante dizer: o trabalho que menor tempo trabalhei na vida foi o UOL, porque no Grupo RBS eu fiquei 10 anos, no Final Sports eu fiquei 10 anos, agora no Correio do Povo eu estou há sete, indo para o oitavo. É difícil, cara, porque como todas as profissões no Brasil, se tu não tens um cargo próximo de chefia, tu ganha mal para realidade brasileira. Claro que comparado a outros trabalhos, o de jornalista tem um salário razoável. Então é muito desgastante, muito trabalho mental, que te exige muito. Tu tens que estar sempre atualizado, sempre pensando em adquirir conhecimento, então é bem complicado e o retorno é bem difícil. Eu sou um cara privilegiado, eu comecei em 1995, trabalhando como entregador de papel, então hoje eu conheço muita gente. Então eu tenho facilidade para as pessoas me ajudarem, me darem uma oportunidade, entende? Para tu conseguires entrar no jornalismo e teres uma carreira, é muito difícil. Porque são poucas vagas e está cada vez diminuindo mais.

FT: E o pessoal, nas redações… As redações estão muito enxutas?

CB: Pra ter uma noção, como jornalista de web fazia tudo: foto, vídeo, escrevia, editava, colocava matéria no ar. Eu fazia todas as funções sendo um profissional só.

FT: Comia farofa e cantava o hino nacional ao mesmo tempo?

CB: E ainda tocava pandeiro junto!

FT: Carmelito, tu te consideras um jornalista objetivo, neutro e imparcial?

CB: Eu costumo dizer que imparcialidade não existe, isenção não existe.

FT: Por quê?

CB: Me perdoa quem prega esse tipo de coisa, mas primeiro… se a gente olhar um prendedor de roupa, cada pessoa que olhar esse prendedor vai ter uma ideia diferente sobre isso, vai ter uma percepção diferente sobre isso. Nós podemos perguntar para mil pessoas, as mil pessoas vão ter uma resposta diferente sobre o prendedor de roupa. Sabe por quê? Porque dentro do nosso conhecimento, do nosso crescimento e nossa evolução, nós vamos captando informações que ficam dentro da nossa cabeça. Quando tu já tens um pensamento sobre alguma coisa, tu já não és mais isento. Tu parte de algum lugar, entende o que eu quero dizer?

FT: De uma vivência, de um conhecimento… claro.

CB: Somado a isso, tem uma parte que é mais fundamental ainda: tu trabalhas para outra pessoa, então tu tens que cumprir o pensamento da tua empresa. Ninguém chega para mim e diz: “oh, tu tens que apoiar o candidato tal, tem que tratar ele de uma forma… Já outro candidato tu tem que meter-lhe o pau”, entende? Ninguém fala isso para ti, mas tu sabes mais ou menos como isso funciona. Tu não podes chegar e escrever o que tu quiseres na página do jornal, por exemplo. Na realidade o que acontece é o seguinte, toda empresa tem um pensamento político, seja uma empresa que vende calçado, seja uma empresa que vende jornalismo. Tendo este fundamento, já não existe mais isenção.

FT: E dentro desta ideia, tu ainda achas que o jornalismo é capaz de influenciar e formar a opinião pública? De que forma isso acontece no teu modo de vista?

CB: Hoje a gente vive uma realidade bastante diferente da realidade em que eu cresci. Na realidade em que eu cresci, o jornalista era peça fundamental para criação de opiniões, por quê? Porque tinham poucos veículos e pouco acesso à informação. A partir dos anos 2000, houve um ‘boom’ de informações e sites para tudo que é lado, e mais recentemente chegaram as redes sociais, que são grandes parceiras e também inimigas do jornalismo. Elas te ajudam muito, mas ao mesmo tempo elas enfraquecem o poder de opinião que tu tens em relação ao conjunto das pessoas.

FT: Porque você é ‘só mais um’ falando ali?

CB: Antes tu tinhas o Lauro Quadros, ele ia para o Jornal do Almoço e dava uma opinião. Tu assistias aquilo e tu saia e debatia com teus amigos: “ah o Lauro Quadros falou tal coisa”, hoje não. Hoje todo mundo tem o direito a dar uma opinião.

FT: E você acha que isso acabou dificultando a profissão de jornalista em formar uma opinião?

CB: Não, acho que não, acho que tem coisas mais importantes hoje. É uma coisa triste de falar, mas o Whatsapp, hoje, é muito mais forte que o jornalismo. Caiu o Whatsapp e as pessoas se desesperam. Antigamente, tu acreditavas no jornalista ou na empresa jornalística, hoje em dia, a concorrência do jornalista é aquele tio que tu não vês há 30 anos. É o cara da tua família que está te passando uma informação que nem ele sabe se é verdadeira ou não.

FT: E como ela é conveniente ela acaba ganhando uma atenção que, talvez, ela não mereceria?

CB: A partir daquilo que ele tem na cabeça, da cultura, daquilo que ele viu a vida inteira dele, ele pega uma informação e — se é agradável para ele — ele repassa. Não interessa se é verdadeira ou falsa, interessa é que passa a ser a realidade de quem está passando essa informação. É uma loucura isso. E explica bastante o que a gente está vivendo no Brasil, no mundo. Steve Bannon está aí pra explicar bem como funciona a coisa. Eu ainda acho que o jornalismo tem grande influência, principalmente nas camadas sociais mais baixas da nossa população, que por sinal é a maior parte da nossa população. Porque essas pessoas não usam redes sociais como a gente usa, elas usam menos. Pela acessibilidade da tecnologia.

FT: O que você leva em consideração para decidir se um fato é uma noticia ou não?

CB: Interesse público, sem dúvida. Mas a gente tem que analisar também da seguinte forma: é interessante para o público? Primeira pergunta. É interessante para empresa? Segunda pergunta. Terceira coisa: tu acreditas naquilo que tu estás lendo ou tu estás escrevendo porque é obrigado? Tudo isso influencia.

FT: Você acha então que é difícil para o jornalista trabalhar se ele não tem bem embasados os seus princípios?

CB: Isso mesmo, e também os princípios da empresa. Porque os princípios da empresa vêm antes dos do jornalista.

FT: E como você faz para lidar quando os seus interesses não são os mesmos da empresa? Você abaixa a cabeça e cumpre?

CB: Isso é uma questão de pessoas que nunca tiveram na situação em que eu me coloquei várias vezes. Vamos falar de forma mais simples. Eu tenho um time de futebol, desde criança torci praquele time, fui no estádio. A outra torcida é minha adversária, certo? Quando eu comecei a trabalhar com esporte, eu comecei a ir ao estádio do time do clube adversário eu passei a respeitar de forma gigantesca o adversário. Por quê? Porque eu chego lá e vejo pessoas trabalhando. E pra mim, Carmelito Bifano, tem outras coisas que são mais importantes, mas pra mim, o trabalhador é uma das coisas mais importantes que existem na vida. A gente tem que respeitar as pessoas que estão lá, se esforçando, errando, acertando. Então o negócio é o seguinte: eu posso até ter dado uma opinião contra o adversário, mas não é pela maldade de falar do clube adversário. É porque eu acredito mesmo naquilo, porque eu tento ser igual como eu sou com o Inter, com o Grêmio. Com o Grêmio e com o Inter! Por quê? Porque isso é uma coisa que está dentro de mim, eu não consigo ser desonesto com o meu trabalho. Eu não posso chegar e falar mal do adversário porque eu não gosto do adversário. Até porque depois de algum tempo isso passa, tu não tens mais esse pensamento, tu entendes? Tu sabes que eu sou um cara que gosta muito de política, e eu trabalho em empresas que tem uma visão diferente da política que eu tenho. Só que quando eu estou lá dentro, eu sei que eu tenho que trabalhar pra eles. Então eu não vou escrever o que eu gostaria de escrever, eu vou escrever o que eu preciso escrever para, no final do mês, ter meu salário.

FT: Mas de certa forma, você consegue aplicar na prática o filtro do Carmelito cidadão, que tem uma posição política, dentro do trabalho? Isso atrapalha ou atrapalhou de alguma forma?

CB: Não, não me atrapalha. No começo até um pouco, porque tive aquela rebeldia, de querer mudar o mundo. De acreditar que o jornalista tem esse poder de mudar o mundo. Me perdoem os colegas, mas quem tem poder de mudar as coisas são as empresas, não são os jornalistas. Hoje existe uma realidade diferente, hoje existem os sites alternativos, que abriram muito espaço para jornalistas que estavam até fora do mercado e aí eles podem dar a opinião deles e tal. Mas de qualquer forma, sempre tu vais seguir o pensamento da empresa. Eu vejo, por exemplo, sites de esquerda. Os caras se digladiando entre eles e isso é normal, agora, tu precisas saber qual é a linha editorial da sua empresa e seguir nela. Por quê? Porque ele é um profissional. Tem muitos amigos meus que dizem “como é que tu podes trabalhar na ‘empresa x’”? Ou eu trabalho para essa empresa ou eu passo fome. Não tem saída, entende? E tem coisas que por mais que se queira mudar, eu não vou conseguir mudar.

FT: Você lembra de alguma matéria que fez e que marcou?

CB: Tem várias coisas que eu já fiz e que tenho orgulho de ter feito. Coisas pequenas, que pra sociedade podem não representar nada, mas pra mim foram gigantescas, como por exemplo fazer sucursal de praia. Jornalista normalmente odeia fazer sucursal de praia porque tu só trabalhas. Eu achava o máximo, porque eu podia ficar de pés descalços na beira da praia, que é uma coisa que eu gosto. Mas também fiz muitas coisas legais sobre carreiras, em uma época em que ainda existia emprego no Brasil. Uma matéria que saiu hoje (05–10–21) no Correio e que eu acho que eu dei minha contribuição para a sociedade — é uma coisa pequena mas eu dei — que foi “O que mudou do começo da pandemia para agora”, essa foi uma pauta que eu dei pra um colega e ele fez. Por exemplo: tu não precisas mais chegar do supermercado, com a sacolinha, e passar álcool em tudo. Por quê? Porque já descobriram que, na superfície, o vírus do Coronavírus morre rapidamente. Esse é o tipo de coisa que eu acho legal, porque a gente leva uma informação que é útil para as pessoas.

FT: Quais são os critérios que você usa para escolher suas fontes?

CB: Basicamente proximidade com o fato. Vamos lá: tu tens que fazer uma matéria sobre energia escura, como é que tu vais buscar alguém com informação para falar sobre energia escura?

FT: Você tem que ir atrás de um físico, no mínimo?

CB: Tu vais procurar uma universidade e ver se essa universidade vai ter alguém que manje do tema. Eu, por exemplo, muitas vezes tive que entrar em contato com a UFRGS, com a PUCRS, com a UniRitter, com várias universidades. Para ver se alguém poderia falar com propriedade sobre o assunto. Essa matéria da pandemia, a gente pegou uma matéria do CDC [Centers for Disease Control and Prevention, agência do Departamento de Saúde e Serviços Humanos dos Estados Unidos], que publicaram na Nature, sobre essa mudança, de um ano pra cá da pandemia. Nós pegamos essa matéria americana e ao mesmo tempo fomos na Santa Casa para falar com o infectologista sobre a nossa realidade, sobre as coisas que estão acontecendo aqui. Então, mesmo tendo uma informação forte, de um país que é muito mais desenvolvido cientificamente do que o nosso, nós também vamos nos nossos pra ver o que é feito por aqui. Isso é uma proximidade! A gente sempre procura primeiro o que é mais próximo de nós. Às vezes um colega indica alguém, bota no Twitter… É assim que funciona. Tu vais procurando até tu chegar em algum lugar que tem o que tu precisas.

FT: Você acha que um jornalista profissional pode defender uma causa enquanto trabalha?

CB: Só se ele for independente. Por exemplo: no Final Sports, como eu era o cara que controlava a linha editorial do jornalismo, eu criei uma forma de fazer jornalismo diferente das que existiam na época. Eram textos curtos, pegava uma notícia e fatiava ela em 10 textos curtos. Eu tinha a impressão que como as pessoas tinham dificuldade no acesso, elas precisavam de uma informação rápida. Não havia saco pra ler textão de jornal, entende? Então as pessoas pegavam ali e liam só um pedacinho. Depois até outros sites seguiram o caminho.

FT: Como podemos combater a proliferação de notícias fraudulentas?

CB: Isso é uma coisa muito difícil, porque tem um princípio que é muito mais forte do que qualquer coisa que o jornalismo faz. Que é o princípio da família. Se o teu tio, lá do Acre, te mandou uma matéria que ele não sabe a fonte, mas faz chegar no teu celular… Pra muitas pessoas esse tio falando é muito mais forte do que o Willian Bonner falando no Jornal Nacional da Globo.

FT: Pela relação de proximidade e afinidade com a pessoa que mandou?

CB: Exato, mesmo que tu não fales com ela há 30 anos. Porque é uma pessoa que tu gostas e confia. A fake news é uma coisa muito difícil de se combater. Ainda mais porque tudo que nós produzimos — enquanto jornalistas — tem um foco, um caminho, uma linha central. Isso não vai significar que é a verdade suprema do fato. As informações vão evoluindo, elas não são uma coisa estanque, e as pessoas que não são profissionais, elas têm muita dificuldade de entender essas coisas. Hoje, para muitas pessoas, parece muito mais fácil pegar e acreditar no tiozão do Acre do que ficar acreditando em uma empresa que, volta e meia, perde a credibilidade por coisas que ela faz e tu sabe que não são a realidade.

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